quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Encontros consigo mesmo

Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
A quem só despertaria
Um infante que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que tentado
Vencer o mal e o bem
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que a princesa vem

A princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera.
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o infante esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela pra ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino,
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada a fora
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sonho ela mora.

E inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A princesa que dormia
Fernando Pessoa

Esse poema chegou até mim em minha adolescência. Desde então, eu sempre voltava a ele. E tanto, que acabei decorando (de cor - de coração). E meu amor por esse poema está relacionado ao fato de que acho possível fazermos uma analogia entre ele e os processos de autoconhecimento pelos quais passamos.

“Conta a lenda que dormia uma princesa encantada a quem só despertaria um infante que viria de além do muro da estrada”...

Quem senão a gente mesmo é capaz de nos despertar para o nosso melhor? Para a descoberta de nossas potencialidades? Podemos ter ajuda profissional, claro, e é até muito bom que lancemos mão desses recursos. Mas ninguém acorda de um adormecimento na vida se não quiser.    

“Ele tinha que, tentado, vencer o mal e o bem, antes que já libertado, deixasse o caminho errado por o que à princesa vem”... Aqui, eu leio:

Ele tinha que se haver com sua sombra e sua luz, encontrar o seu caminho e continuar buscando a si mesmo.
 
“A princesa adormecida se espera, dormindo espera. E orna-lhe a fronte esquecida, verde, uma grinalda de hera”.

Por muito tempo em nossas vidas, parece que a gente ficou adormecido e algumas coisas acontecem, mas a gente não se lembra, ou tem a sensação de que não era “a gente mesmo”, quando saímos dessa situação parece que saímos de um sonho, ou de um pesadelo. Nessas fases podemos estar inclusive esperando por algo externo, quando na verdade o que a gente mais precisa está no interior. A “grinalda de hera” pode nos cegar por muito tempo...

“Ele dela é ignorado, ela pra ele é ninguém”... Sem o autoconhecimento, eu sou alguém que não sei que existe.

“Mas cada um cumpre o Destino – Ela dormindo encantada, ele buscando-a sem tino,
Pelo processo divino que faz existir a estrada”...

Mas felizmente, sempre surgem oportunidades de descobertas interiores, de contatos com nossa essência e parece que de maneira inconsciente, acabamos buscando por isso. Que bom!

“E se bem que seja obscuro tudo pela estrada a fora e falso, ele vem seguro. E vencendo estrada e muro, chega onde em sonho ela mora”...

O processo de autoconhecimento é complexo, pode ser difícil e doloroso, mas é sempre recompensador.

“E, inda tonto do que houvera, à cabeça, em maresia, ergue a mão e encontra hera. E vê que ele mesmo era a princesa que dormia”.


Então, a gente se encontra. Encontra a si mesmo e pode assim experimentar a primeira história de amor que deveríamos viver... consigo mesmo...  Desta forma, abraçando nossa sombra e nossa luz, amando e respeitando cada pedacinho nosso, genuinamente, podemos compreender e amar os outros. Amor maduro.

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